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Auto da barca do inferno: resumo Gil Vicente



Gil Vicente nasceu por volta de 1465 e publicou em folhetos de cordel alguns dos seus autos.

Por que podemos dizer que o teatro vicentino  é em grande parte alegórico?

        Primeiro, é necessário saber o significado de tal expressão: teatro Alegórico corresponde à representação de uma ideia abstrata ou  um tipo social, por meio de uma personagem.  Assim, de forma burlesca, cômica, em o Auto da barca do inferno, o bem é representado  pelo Anjo e  o mal pelo Diabo e seu barqueiro. Aliás, na mitologia grega, era o Caronte quem conduzia as almas para o outro lado do rio da morte, desde que elas lhe pagassem duas moedas.
            A peça traz à tona a situação de iminência do fim do mundo “Juízo Final”, em que os anjos virão separar os “maus” do meio dos “justos”.
            Encenada pela primeira vez para a rainha D. Maria, em 1517, a peça começa no ponto em que as almas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dois batéis (barcos): um deles com destino ao Céu, e o outro com viagem prevista ao Inferno.
            As barcas aguardam as almas que acabaram de morrer para, então,  conduzirem-nas ao  Céu, caso tenham praticado boas ações em vida, ou para o Inferno, se suas ações forem consideradas errôneas.
            As personagens representam tipos sociais da sociedade portuguesa da época. Cada qual traz consigo os objetos que simbolizam suas ações: boas ou más:

Diabo:  é o capitão da barca do inferno, portanto é quem apressa o embarque dos condenados. Ele  é dissimulado e irônico.

Anjo: é o capitão da barca do céu. Ele elogia a morte pela fé, é austero e inflexível.

  1. Fidalgo: representa a nobreza exploratória e arrogante. Seus símbolos: uma cadeira, simbolizando luxo e poder, pois era costume os fidalgos serem acompanhados por um empregado que levava uma cadeira, para o caso de eles quererem se sentar. Além disso, o Fidalgo também carrega consigo  um manto, representando a vaidade e a classe social a que pertence.

  1. Onzeneiro: idolatra o dinheiro, é agiota e usurário; de tudo que juntara, nada leva para a morte, ou melhor, leva a bolsa vazia.
    Trata-se de pessoa avarenta, ambiciosa, agiota, aquele que empresta dinheiro a juros. A palavra deriva de “onzena”, que significa juros de onze por cento. Símbolo: uma bolsa grande usada para transportar dinheiro.

  1. Parvo, Joane (forma antiga de João): representa o tolo, bobo. A ele são confiadas verdades que outros não dizem. Sua simplicidade faz com que ele represente certa sabedoria popular. Por outro lado, ele representa o povo português, rude e ignorante, porém bom de coração e temente a Deus. 

  1. Sapateiro: os artesãos que correspondem aos comerciantes atuais. Símbolo: avental, formas e suas ferramentas do ofício (couro para fabricação de sapatos).

  1. Frade: representa os maus sacerdotes e é subjugado por suas fraquezas: mulher e esporte. Símbolos: a amante, representando a quebra dos votos de castidade e as armas de esgrima: um broquel (escudo), uma espada e um capacete.  Esses objetos denunciam a falsidade praticada na vida religiosa, assim como a vida mundana, isto é, a busca por prazeres materiais.

  1. Florença: amante do Frade.

  1. Brísida Vaz: alcoviteira: representa a degradação social, a prostituição, cafetina,  feitiçaria. Símbolos: “seiscentos virgos (hímen, virgindade da mulher) postiços”“Três arcas de feitiços”“Três almários de mentir”“Cinco cofres de enlheos”“jóias de vestir”“Guarda-roupa”“Alguns furtos alheios”“Casa movediça”“Estrado de Cortiça”

  1. Judeu:  representa os infiéis que são alheios à fé cristã. Símbolo: um bode às costas, significando parte dos rituais de sacrifício da religião hebraica e desrespeito à abstinência e o jejum cristão (o Judeu comia carne em dia de jejum). “Durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época”.


  1. Corregedor: juiz de direito cuja função cabe corrigir os erros ou abusos das autoridades e funcionários da justiça. Símbolos: feitos, processos e uma vara, insígnia da justiça.

  1. Procurador: advogado do Estado. Simboliza a magistratura corrupta e encarna a burocracia jurídica da época. Símbolos: livros.

  1. Enforcado:  é o símbolo da falta de fé e da perdição. Símbolo: corda.
  

  1. Quatro cavaleiros: representam as cruzadas contra os mouros e a força da fé católica. Símbolos: Cruz de Cristo.
 Considerações finais
           
            Auto é uma composição dramática medieval com argumento em geral bíblico ou alegórico.
           
            O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia: “Auto da Barca da  Glória”, Auto da Barca do Inferno" e "Auto da Barca do Purgatório".Publicado em 1517, “Auto da Barca do Inferno” foi escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem utilizada pelos personagens varia, desde a coloquial  até a erudita forense. É somente por meio das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens.
            O moralismo vicentino localiza os vícios, não nas instituições, mas nos indivíduos que as fazem viciosas. Preso aos valores cristãos, Gil Vicente tem como objetivo alcançar a consciência do homem, lembrando-lhe que tem uma alma para salvar.
            Inserido no Humanismo, o dramaturgo mantém forte ligação com os valores medievais, sobretudo os cristãos. Dessa forma, busca a moralização do homem para que este encontre a salvação de sua alma.

Bibliografia:
SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Porto. 

Auto da Lusitânia

Todo o Mundo e Ninguém

Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. 
Representada pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), a obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente. 
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:


Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Notas de tradução
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar, 
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar. 
Porfiando: insistindo, teimando.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
O verbo haver nestes versos tem o sentido de ter.
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
E sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém, 
e busco a consciência.

Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem. 

Dinato:
Que escreverei, companheiro?

Belzebu:
Que ninguém busca consciência. 
e todo o mundo dinheiro. 




Ninguém:
E agora que buscas lá?

Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.

Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.

Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.
Adição: acrescentamento.
Acude: ocorre.



Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?
A palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada de maior. Poderíamos dizer, pois:
buscas outro maior bem...
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.

Ninguém:
E eu quem me repreendesse 
em cada cousa que errasse. 

Belzebu:
Escreve mais.

Dinato:
Que tens sabido?

Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado, 
e ninguém ser repreendido.




Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.
Ma: me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto, respectivamente.
Ninguém:
A vida não sei que é, 
a morte conheço eu.

Belzebu:
Escreve lá outra sorte.

Dinato:
Que sorte?

Belzebu:
Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte. 
Garrida: engraçada.



Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso, 
sem mo ninguém estorvar.
Mo: me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim. 
Estorvar: atrapalhar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso. 
Ponho: entenda-se: proponho.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.

Dinato:
Que escreverei?

Belzebu:
Escreve
que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve. 




Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar, 
e mentir nasceu comigo.
Folgo: tenho prazer, gosto.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.

Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.

Dinato:
Quê?

Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso, 
E ninguém diz a verdade.




Ninguém:
Que mais buscas?

Todo o Mundo:
Lisonjear.
Lisonjear: elogiar.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.

Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.

Dinato:
Que me mandas assentar?

Belzebu:
Põe aí mui declarado, 
não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro, 
e ninguém desenganado.
mui: forma reduzida de muito.

O autor deu o nome de Todo o Mundo e Ninguém às suas personagens principais desta cena. Pretendeu com isso fazer humor, caracterizando o rico mercador, cheio de ganância, vaidade, petulância, como se ele representasse a maioria das pessoas na terra (todo o mundo). E atribuindo ao pobre, virtuoso, modesto, o nome de Ninguém, para demonstrar que praticamente ninguém é assim no mundo.
O autor: Gil Vicente
Não se sabe, ao certo, a data do nascimento de Gil Vicente. Talvez 1452, 1465 ou 1470. Supõe-se tenha falecido em 1537. Trabalhava junto à corte, como mestre da balança (ou seja, diretor da Casa da Moeda). Em 1502, por ocasião do nascimento do príncipe D. João III, representou perante a rainha mãe, ainda acamada, a peça Auto da visitação (ou Monólogo do vaqueiro). Com ela iniciava o teatro em Portugal. 
Em sua biografia quase tudo são hipóteses, inclusive a cidade portuguesa que teria sido seu berço natal. 
Mas o importante mesmo é o valor de sua extensa obra teatral, com a qual pintou um painel crítico da sociedade portuguesa quinhentista, não lhe tendo escapado classe social alguma. Suas peças eram, em geral, representadas nos paços reais, com a corte presente. Os cenários e os recursos técnicos eram pobres, mas os temas engenhosos , as personagens decalcadas da realidade e a agilidade do diálogo, além do humor, fizeram do autor um dos mais significativos de toda a história da literatura portuguesa. Principais obras: Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória (a chamada Trilogia das barcas), Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira. 
Apesar da dificuldade que poderá ocorrer na leitura e representação de suas peças, por causa da linguagem antiga, vale a pena conhecer esse autêntico gênio do teatro português de todos os tempos. 
Fonte: "Aprendendo o Português...", Dino Preti, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977